Geral

Senna, 30 anos – Capítulo 1: chega a eletrônica. E a Williams do brasileiro piora

No primeiro texto da série especial sobre os 30 anos do acidente fatal, Livio Oricchio explica como mudanças na categoria levaram aos trágicos acidentes da temporada de 1994 da Fórmula 1

Eletrônica embarcada proibida na F1 em 1994. E a Williams, agora de Senna, não é mais a mesma.

Você talvez se lembre de que mencionei na apresentação dessa série a necessidade de disponibilizarmos um painel amplo do cenário da F1 naquele início dos anos 90, a fim de compreender melhor os trágicos acontecimentos verificados no início do campeonato de 1994.

É possível que em algum momento da leitura desses primeiros capítulos você questione a ligação entre os episódios nefastos no Autódromo Enzo e Dino Ferrari e o que narro aqui no início de nossa conversa.

Mas tenha a certeza de que, mais para a frente, ficará clara a razão de abordar esses temas aparentemente de menor relevância no contexto geral das tragédias de Ímola. Pode acreditar, não é o caso.

Vamos lá.

– Concordei com as mudanças porque me convenceram de que elas seriam melhores para a F1 – afirmou Frank Williams, na apresentação do modelo FW16-Renault. Sua equipe havia vencido os mundiais de 1992, com Nigel Mansell, e de 1993, Alain Prost, com enorme facilidade.

Senna, de McLaren, motor Honda em 1992 e Cosworth, 1993, já três vezes campeão do mundo, não podia acompanhá-los de perto, quanto menos desafiá-los na luta pelo título.

Dou aqui um exemplo prático da superioridade dos carros da Williams: assisti ao primeiro treino livre do GP da África do Sul de 1992 atrás do guardrail das curvas 1 e 2 do circuito de Kyalami, ao lado do mestre Jackie Stewart, campeão em 1969, 1971 e 1973. Era a etapa de abertura do campeonato.

Prognóstico precoce e correto

Depois de ver Mansell percorrer aquelas curvas com o modelo FW14B-Renault da Williams, e comparar, por exemplo, com o MP4/6-Honda de Senna, Stewart comentou comigo:

– O mundial acabou, a não ser que a nova McLaren se mostre tão veloz quanto esse carro da Williams, o que não acredito.

A McLaren iria estrear o seu modelo de 1992, o MP4/7A-Honda, a princípio, somente na quinta etapa, dia 17 de maio, em Ímola. Antecipou para a terceira corrida, em Interlagos, de 3 a 5 de abril.

Quando regressei para o paddock de Kyalami, vi Senna caminhando para o motorhome da McLaren. Outros jornalistas tiveram a mesma ideia de saber sua opinião a respeito do que acabáramos de ver na pista. A imprensa tinha muito mais liberdade do que hoje.

Senna nos disse:

– Fui dois segundos mais lento (do que Nigel Mansell). Estamos muito atrás. Temos de apressar a estreia do novo carro e não há nenhuma certeza de que será dois segundos mais rápido para pensarmos em lutar com eles (Williams).

Vai vendo como seria difícil para a McLaren, Ferrari, Benetton, ou quem fosse, se aproximar da performance da Williams em 1994 se o regulamento de 1993, com todas as imensas liberdades eletrônicas, fosse mantido.

A genialidade de um projetista

Sabe quem respondia por aquela eficiência toda da Williams? Principalmente o coordenador dos projetos, o notável engenheiro aeronáutico inglês Adrian Newey.

E você tem ideia de quem é o gênio por trás das conquistas de Max Verstappen na Red Bull-Honda nos três últimos mundiais, sendo 2022 e 2023 sem adversários, como a Williams em 1992 e 1993? Se você respondeu Newey, acertou em cheio. Aos 65 anos, não cogita, sequer, deixar de trabalhar, para a tristeza de Toto Wolff, da Mercedes, Frederic Vasseur, Ferrari, e Zak Brown, McLaren, dentre outros.

Newey já havia concebido para a Red Bull-Renault os carros dos quatro títulos seguidos de Sebastian Vettel, de 2010 a 2013, dentre outras conquistas anteriores com a própria Williams e a McLaren.

Lição de desprendimento

E não é que contra todas as tendências Frank Williams concordou com o projeto do presidente da FIA, Max Mosley, e do promotor da F1, Bernie Ecclestone, de proibir exatamente o que sua equipe melhor dominava em relação aos adversários, a eletrônica embarcada? Haja desprendimento!

Os modelos de 1993, por exemplo, tinham suspensão ativa, câmbio automático, diferencial autoblocante autoajustável, controle de tração, acelerador eletrônico, freio ABS, dentre outros. Já imaginou isso hoje? Os carros voariam!

De novo: me estendi nesse tema por ser importante para compreender a série de acidentes graves experimentados pela F1 antes ainda de o mundial de 1994 começar e depois nas primeiras etapas.

As relações entre as equipes, a FIA e a Formula One Management (FOM) são regidas por um contrato chamado Pacto da Concórdia. A versão do pacto em vigência em 1994 exigia unanimidade dentre os diretores das equipes para haver uma alteração tão radical das regras como a que ocorreu naquele ano. Hoje mudou.

Para Frank Williams provavelmente manter sua hegemonia, em 1994, bastava dizer “não” a todos que evocavam uma profunda revisão conceitual de tudo o que havia na F1, técnica e esportivamente.

A FIA não tinha elementos para usar a prerrogativa de, por conta própria, mudar as regras sob o pretexto da necessidade de elevar a segurança. A F1 não apresentava no início dos anos 90 acidentes que sugerissem obrigatoriedade de rever os regulamentos.

Acabar com a hegemonia da Williams

Na verdade, o que Ecclestone e Mosley desejavam, muito estimulados pela concorrência também, era acabar com a superioridade absoluta da Williams. Tornar a F1 mais competitiva, emocionante.

Havia um agravante a mais para a F1 naquele avanço todo da Williams em 1992 e 1993: o principal piloto do time a partir de 1994 seria Ayrton Senna.

– Tenho receio de que ele vença as 16 etapas do campeonato, o que será péssimo para a F1 – disse, na época, Flavio Briatore, diretor da Benetton, equipe da estrela emergente Michael Schumacher.

A Benetton era o time oficial da Ford e utilizaria um motor V-8, enquanto a Williams, da Renault, competia com um V-10, ambos de 3,5 litros de volume. A diferença de potência em favor da Williams era significativa, estimada em algo como 40 cavalos, pelo menos. Mais à frente, falaremos de como o carro da Benetton competiu com o controle de tração, mesmo com o recurso sendo proibido.

Anos mais tarde, Mosley afirmou saber que um time, em 1994, o utilizava, sem citar o nome, e em razão da impossibilidade de controlar se uma equipe o tinha ou não no carro a FIA autorizou, em 2001, seu uso.

A aprovação de Frank Williams era essencial para mudar o regulamento e, com isso, reverter essa expectativa de sua escuderia vencer tudo. Se os recursos eletrônicos fossem proibidos, todos os projetistas partiriam quase do zero para conceber seus novos carros, dando a chance de haver um maior nivelamento dos concorrentes.

Tirariam da Williams o que ela tinha de melhor: o seu supereficiente sistema de suspensão ativa, o que fazia com que seus monopostos desfrutassem ao máximo da sua refinada aerodinâmica, principal fator de diferenciação nos projetos de Newey.

Em 2020, a vez da Mercedes

Se você acha que essa solução tem alguma semelhança com a introdução do conceito do carro-asa, em 2021, obrigando os projetistas a esquecerem quase tudo o que faziam nos seus monopostos, saiba que você está absolutamente certo!

E o que aconteceu com a Mercedes desde então? Sim, a Mercedes que venceu os sete mundiais de pilotos e oito de construtores, seguidos, de 2014 a 2021. Desde então não conquistou mais nada. Cedeu seu espaço para a Red Bull-Honda. A F-1 tem soluções clássicas na gaveta para interromper a hegemonia de um time.

Aguarde para o que acontecerá a partir de 2026, quando teremos nova revisão conceitual do regulamento, no chassi e, principalmente, nas unidades motrizes. Será surpreendente se a Red Bull, então com unidade motriz própria, seguir se impondo na F1.

É a chance que Mercedes, Ferrari, Aston Martin, Alpine, enfim todos esperam, avidamente, para tentar acabar com seu domínio absoluto. E estímulo para o ingresso na F1 de Audi, com escuderia própria, e Ford, associada a Red Bull. A Honda vai para a Aston Martin.

Voltemos a 1994. A FIA anunciou, em grande estilo, em meados da temporada de 1993, depois da concordância de Frank Williams, que toda e qualquer ajuda ao piloto, durante a condução, estaria proibida a partir do ano seguinte. Assim, todos aqueles recursos eletrônicos que mencionei há pouco estavam simplesmente proibidos.

O carro deveria ser conduzido apenas pelo piloto. Os auxílios à pilotagem não mais seriam aceitos. O objetivo era valorizar o homem, não o equipamento.

Múltiplas estratégias

Também para aumentar a possibilidade de não mais haver resultados tão previsíveis quanto em 1992 e 1993, assim como tornar as corridas mais atrativas, com as equipes adotando diferentes estratégias de competição, a FIA reintroduziu, em 1994, o reabastecimento de combustível, proibido desde 1984.

Foi diante desse novo desafio que Newey e Patrick Head, este diretor-técnico e sócio de Frank Williams, começaram a trabalhar no projeto do FW16, o carro que Senna tanto sonhara.

Como todos os demais técnicos, o tempo a disposição para repensar radicalmente seus monopostos era bastante curto, o que também contribui para o grupo coordenado por Newey conceber um projeto cheio de problemas, com muitas áreas ainda por serem desenvolvidas a fim de torná-lo mais equilibrado, previsível e constante.

No próximo capítulo, vamos falar um pouco mais das características desse monoposto revolucionário, onde o semieixo de tração funcionava também como elemento da suspensão traseira e do conjunto aerodinâmico. As primeiras suspeitas sobre a causa do acidente fatal de Senna recaíram na sua ruptura.

Iremos mais fundo também no dia em que Newey e Frank Williams decidiram recuar e experimentar o modelo de 1993, adaptado ao regulamento de 1994. Motivo: logo nos primeiros treinos, no Estoril, em Portugal, Senna, profundamente decepcionado, deixou claro aos dois que havia algo errado com o FW16.

Seu companheiro, Damon Hill, ratificou a sua impressão. Senna havia pilotado o FW15C de 1993 adaptado e o considerou superior ao modelo novo que o substituiria.

Aguarde, a história está só começando.

Fonte: G1. esportes

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo